domingo

Cantiga

Liguei o som. No rádio tocava algo e eu de nada entendia. O mundo parecia girar em câmera lenta, e num surto, me lançar para fora dele, me fazendo apenas espectadora de todos esses giros. Como se lá de cima eu pudesse ver Marte entrar em contato com a Terra e formar um grande eclipse. Era tudo tão surpreendente. A Terra girando e conflitando com Marte, entrando em estado de amor imenso. Como um grande balé, cheio de passos certeiros e choques e estados de amor. Eu procurava entender o que a rádio me dizia:"três da tarde, o tempo está nublado e um milhão de estradas congestionadas querendo levar as pessoas ao mesmo lugar. O congestionamento é consequencia das chuvas de verão provocadas pelo El Niño. A cidade está debaixo d'agua. Pessoas morrem porque não sabem nadar". Não sei nadar, eu poderia morrer se estivesse no lugar errado agora. Estou no meio do congestionamento e meu carro é o meio da fila, "não chegarei a tempo, não chegarei a tempo" penso. Pode ser que eu tenha inventado tudo isso, radialista nenhum diria isso às três da tarde, não estava nublado, eu imagino. E lentamente eu parecia voltar à Terra. Abro os olhos de leve, estou deitada no tapete branco do meu quarto, ainda tão desarrumado. Alguém bate na porta... quem poderia ser? Ninguém, estou sozinha em casa, melhor não atender, melhor esquecer. Hoje também não atendi telefonemas. Há tempos não atendo o telefone que parece tocar sem parar. Nenhum amor, nenhum recado, nenhuma novidade para contar aos amigos, nenhum braço a torcer aos inimigos. Nada muda. Acho que estou sobre este tapete no mínimo uns 20 dias. O carnaval já passou, os blocos foram-se embora. Em boa hora. Ou não. São quase quatro da tarde, já. Já? Só? Só. Deve ser tudo ilusão. Quem bate na porta agora é minha mãe. Eu estou a frente desse computador contando essas mentiras de carnavais. Eu não estou. Na prosa, quase morta, me despeço. Me despenco porque escrever torna todas as mentiras verdades. E desato os nós, porque só há nós nos que amam e são amados. Nas minhas mentiras - já tão verdades - não há nós. Há eu.

Um comentário:

Unknown disse...

"Me despenco porque escrever torna todas as mentiras verdades. E desato os nós, porque só há nós nos que amam e são amados. Nas minhas mentiras - já tão verdades - não há nós. Há eu."

Muito belo. Escrever torna sim, as mentiras verdades. Escrevendo a gente faz história. A nossa história.