sábado

Comigo

Querido,
Tosse, tosse, tosse. Algo engasgado de tal forma que tosse nenhuma arranca do lugar. Lágrimas nos olhos. Tento me levantar, tudo roda e quase caio. Pode ser que seja a pressão, para sempre tão baixa. Nada se move. As horas passam, os compromissos chegam, minha mãe não atende o telefone. Odeio precisar dessas caronas. Tosse, ainda. Tem um chocolate na geladeira, quer? Esse telefone aqui em minha frente, ninguém atende, ninguém responde. O telefone está mudo, cortaram? Não. Consigo. Disco lentamente, de novo, os números da minha mãe. "Mãe, vem me buscar, estou engasgada". Porra, que isso! Essa tosse que não passa. E você, como está? Engasgado também? Eu tinha prometido que não iria mais te escrever, mas essas cartas são a melhor saída pra me livrar das angústias. Eu quero ter tempo pra tudo e, no entanto, não encontro tempo sequer para respirar. Por quê? Não faço nenhum esporte, nenhum curso, nada. Dá onde vem essa falta de tempo? Preciso é comprar um relógio e um jornal. Vou desligar tudo e passar ali na esquina tomar um café amargo, naquele bar sujo com pessoas tropeçando nos próprios passos. Vou ver se consigo desengasgar vomitando todas essas coisas em você, essas verdades, essas saídas que não encontro. Passa devagar a mão sobre o meu cabelo, conta-me uma mentira qualquer, uma história.
Cem gramas, sem dramas, um beijo,
Maria.

quinta-feira

Corro demais só pra te ver, meu bem

A solidão é meu cigarro
Não sei de nada e não sou de ninguém
Eu entro no meu carro e corro
Corro demais só pra te ver, meu bem

Um vinho, um travo amargo e morro
Eu sigo só porque é o que me convém
Minha canção é meu socorro
Se o mar virar sertão, o que é que tem?

Dias vão, dias vêm, uns em vão, outros nem
Quem saberá a cura do meu coração se não eu?
Não creio em santos e poetas
Perguntei tanto e ninguém nunca respondeu
Melhor é dar razão a quem perdoa
Melhor é dar perdão a quem perdeu

O amor é pedra no abismo
A meio-passo entre o mal e o bem
Com meus botões à noite cismo
Pra que os trilhos, se não passa o trem?

Os mortos sabem mais que os vivos
Sabem o gosto que a morte tem
Pra rir tem todos os motivos
Os seus segredos vão contar a quem?

Dias vão, dias vêm, uns em vão, outros nem
Quem saberá a cura do meu coração se não eu?
Não creio em santos e poetas
Perguntei tanto e ninguém nunca respondeu
Melhor é dar razão a quem perdoa
Melhor é dar perdão a quem perdeu

Não creio em santos e poetas
Perguntei tanto e ninguém nunca respondeu
Melhor é dar razão a quem perdoa
Melhor é dar perdão a quem perdeu.
Zeca Baleiro

terça-feira

Crime perfeito.

Era um vez...
Não, não era uma vez, ainda é. O coração ainda acelera e eu ainda não consigo falar de nada que não seja amor. Amor saindo pelos poros e disparando corações já tão cansados e velhos e abatidos. Eu poderia correr para sempre e para tão longe quanto nem você e nem eu pudéssemos me ver. Mas não é permitido. Tenho que ficar aqui e sentir dia após dia a casca da ferida sendo tirada na unha, ferindo sem anestesia, sangrando, morrendo. E depois, mais uma vez, você surge e me embala num abraço. Morde para depois soprar, sua tática infalível. Infalível porque você já sabe que eu sempre te aceito, que eu sempre te permito, que não consigo vencer essa batalha diária contra mim mesma e todo esse baralho de sentimentos aqui dentro. Bem aqui, olha. Aqui do lado esquerdo do corpo, no ponto máximo, no grande senhor soberano que bombeia o sangue e, assim, permite a vida. Aqui no coração. Ainda velho cansado e velho e abatido e sempre a mercê dos seus crimes perfeitos.

Sem eira nem beira.

Se um dia nois se gostasse
Se um dia nois se queresse
Se nois dois se empareasse
Se juntim nois dois vivesse
Se juntim nois dois morasse
Se juntim nois dois drumisse
Se juntim nois dois morresse
Se pro céu nois assubisse
Mas porém acontecesse de São Pedro não abrisse
a porta do céu e fosse te dizer qualquer tulice
E se eu me arriminasse
E tu cum eu insistisse pra que eu me arresolvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tarvês que nois dois ficasse
Tarvês que nois dois caisse
E o céu furado arriasse e as virgi toda fugisse

Ai se sêsse - zé da luz

domingo

Cantiga

Liguei o som. No rádio tocava algo e eu de nada entendia. O mundo parecia girar em câmera lenta, e num surto, me lançar para fora dele, me fazendo apenas espectadora de todos esses giros. Como se lá de cima eu pudesse ver Marte entrar em contato com a Terra e formar um grande eclipse. Era tudo tão surpreendente. A Terra girando e conflitando com Marte, entrando em estado de amor imenso. Como um grande balé, cheio de passos certeiros e choques e estados de amor. Eu procurava entender o que a rádio me dizia:"três da tarde, o tempo está nublado e um milhão de estradas congestionadas querendo levar as pessoas ao mesmo lugar. O congestionamento é consequencia das chuvas de verão provocadas pelo El Niño. A cidade está debaixo d'agua. Pessoas morrem porque não sabem nadar". Não sei nadar, eu poderia morrer se estivesse no lugar errado agora. Estou no meio do congestionamento e meu carro é o meio da fila, "não chegarei a tempo, não chegarei a tempo" penso. Pode ser que eu tenha inventado tudo isso, radialista nenhum diria isso às três da tarde, não estava nublado, eu imagino. E lentamente eu parecia voltar à Terra. Abro os olhos de leve, estou deitada no tapete branco do meu quarto, ainda tão desarrumado. Alguém bate na porta... quem poderia ser? Ninguém, estou sozinha em casa, melhor não atender, melhor esquecer. Hoje também não atendi telefonemas. Há tempos não atendo o telefone que parece tocar sem parar. Nenhum amor, nenhum recado, nenhuma novidade para contar aos amigos, nenhum braço a torcer aos inimigos. Nada muda. Acho que estou sobre este tapete no mínimo uns 20 dias. O carnaval já passou, os blocos foram-se embora. Em boa hora. Ou não. São quase quatro da tarde, já. Já? Só? Só. Deve ser tudo ilusão. Quem bate na porta agora é minha mãe. Eu estou a frente desse computador contando essas mentiras de carnavais. Eu não estou. Na prosa, quase morta, me despeço. Me despenco porque escrever torna todas as mentiras verdades. E desato os nós, porque só há nós nos que amam e são amados. Nas minhas mentiras - já tão verdades - não há nós. Há eu.

terça-feira

89% concluído.

Novos vícios, novos horizontes: www.flickr.com/photos/pelosares

Eu tive um amor um dia

"Eu entro nesse barco, é só me pedir. Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou (...). Eu abandono tudo, história, passado, cicatrizes. Mudo o visual, deixo o cabelo crescer, começo a comer direito, vou todo dia pra academia (...). Mas você tem que remar também. Eu desisto fácil, você sabe. E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos, mas eu entro nesse barco, é só me pedir. Perco o medo de dirigir só pra atravessar o mundo pra te ver todo dia. Mas você tem que me prometer que vai remar junto comigo. Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir. Mas a gente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto. Eu te ensino a nadar, juro! Mas você tem que me prometer que vai tentar, que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças! Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa, que vale a pena. Que por você vale a pena. Que por nós vale a pena. Remar. Re-amar. Amar."

sábado

Desistir, desistir, desistir

Fabrício Carpinejar - Daqui por diante
Você me diz que tratará de arranjar um jeito de arrancar seu amor por mim. Como parar de fumar ou beber.
PARE DE AMAR E EMAGREÇA DEZ QUILOS.
Parece fácil?
Já a vejo colocando adesivo no carro. Já a vejo mostrando fotografias de ANTES e DEPOIS.
É descer e pôr o amor na rua, com o cuidado de embrulhar o vidro no jornal para o lixeiro não se ferir.
Tem medo que eu a descarte, portanto é melhor acabar agora. É melhor não sofrer mais. Não vai arriscar.
Nem subirá os olhos pelos andares da geladeira. Não vai conferir a data de validade das confidências. Descobriu que o amor estragou.
Decidiu. Não é uma ameaça, é uma conclusão. Para sempre.
Está interessada em cuidar de sua saúde. Mudará os hábitos.
É com facilidade que afirma. Com desembaraço. Assim como trocar o dia cinco pelo seis na folhinha do calendário, como amarrar os sapatos, como separar as roupas velhas das vivas.
Não pretende mais ser incomodado. Não tem mais nada para falar.
Você cuidará de expulsar o amor que tem por mim. Cortará a água e a luz desse amor.
Está cansada de explicar. Explicar o que nem entende.
Você é capaz de casar para se vingar. Fingir que está feliz. Colocar toda a sua concentração para me convencer que conseguiu.
Serei deportado de sua memória. Me mandará de volta ao conto de fadas, de onde nunca deveria ter saído.
Explica que não é pessoal, é uma decisão técnica. Há outras vidas inocentes em jogo. Mais um pouco, as paredes desabam.
Não é justiça, é desespero, que dá no mesmo.
Rasgou o que não é papel: meus cabelos, meus cílios, meus casacos.
Decidiu, ponto. Como arrumar a cama. Como limpar as gavetas. Como empilhar a louça.
Botou na cabeça. Como quem bate a porta. Como quem desliga o telefone na cara.
Pronto. Como desistir de um curso. Como abandonar uma viagem.
Sem recurso. Sem direito de resposta. Sem pensar duas vezes.
Você vomitará inteiro seu amor por mim. Com os dedos na garganta.
Você deixará o banho transformada. Sem nenhuma lembrança da praça e da noite em que tremia de frio.
Recomeça o ano com um caderno mais bonito do que sua letra.
Sofrerá um pouco de contrariedade no início. Como um vício. Após a primeira semana passa. Acredita que passa.
Você pedirá atestado médico. Para não ir ao trabalho desse amor. Ao expediente desse amor.
Você fará quimioterapia desse amor. Arrancará o câncer desse amor. Arrancará o caroço de minhas mãos de seus seios. Arrancará o pressentimento do meu braço de seus ombros.
Nenhuma choradeira. É natural desamar. Como espantar insetos com o calor. Como recusar esmolas na sinaleira.
Está mais madura, determinada, livre.
Você decidiu, não depende mais de mim. Você decidiu que não presto para sua vida, que merece alguém melhor.
Como quem escolhe ser vegetariana. A partir de hoje, não comerá mais carne. Simples: a partir de hoje, não me ama mais.
Você cuspirá em meu nome. Você vai ocupar todas as sessões de terapia para me ofender.
Eu não presto, nunca prestei, mas o amor que você sente não tem nada a ver comigo. Ele não depende de nós para nascer ou morrer.
Isso só descobrirá depois. Depois de desistir de desistir de desistir.


Insônia

Querido,
dangerous and sweet
Acabo de ouvir uma música sobre contos de fadas, na voz de uma menina que eu desconheço, mas que canta muito bem, tão bem quanto eu gostaria. Mas de que isso te importa, não é? Eu não sei o que te importa. O que é um conto de fadas? Princesas, príncipes, belas e feras? Ah não, quanta bobagem. É tão doce, mas tão perigoso, tão encantador, mas tão inatingível. Como você. Você é um conto de fadas completo, que só me permite uma leitura. Ou quem sabe duas, três. Mas viver nele já seria pedir demais. E digo tentando me enganar: "Eu não quero mais o que eu não posso ter".
E neste dia quente, a minha pressão despenca e eu tento te dizer que não é assim.
Maria.

Eu faço sala pro tempo.

Tenho a memória de tudo que existe
Tudo que é triste e alegre ou não
Eu guardo as flores mortas na sala
Eu faço sala pro tempo
Eu guardo as flores mortas na sala
Eu faço sala pro tempo
Zeca Baleiro

quarta-feira

Pra ser sincera.

Querido,
Agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou. Vai ser difícil sem você.
Eu venho mais uma vez me entregar aos nossos planos e te deixar saber dos meus enganos. Eu vim mesmo te dizer que uma amiga minha me mandou desmentir a última carta sua. Eu não desisti, você sabe. Eu não desisto, é claro que você sabe. Só tomo distância, e depois volto com mais vontade de ganhar. Te ganhar? Não. Me ganhar. Não vou me enganar, não vou te enganar. Vai ser difícil sem você. Queria poder atrasar os relógios - de novo os tempos, te cansa essa repetição? - e poder te encontrar no tempo certo, se é que há. Todo dia os mesmos lamentos, todo dia a mesma saudade, e eu, todo dia acordando com essa vontade de olhar noutra direção. Mas eu não me permito, não te permito.
Eu quero ir embora, eu quero dar o fora e quero que você venha comigo, já dizia numa música até um pouco antiga que ouço agora na voz de Caetano. Mas é um convite, vamos?
Maria.

terça-feira

Sobre as estrelas.

-Todas nós nos aprontamos depressa. Era uma ocasião sempre muito importante quando ela, a menina, se deitava no seu gramado para nos olhar. Queríamos era competir, cada uma a seu modo, queríamos brilhar muito naquela noite. Ainda era tarde e alguém nos avisou que ela se deitaria hoje às nove, e que nos olharia até as onze, e depois iria chorar. E a gente tinha sempre o dever de se afastar, aproximar, tudo ao modo e para agradar a visão da menininha. Não sei, ainda não sei por que competíamos tanto o olhar dela, sempre doce. Mas eu não queria me arrumar, nunca quis. Ainda mais num céu com nuvens como haveria de estar essa noite. Marte brilhava tanto, impossível superar. Então era melhor mesmo me esconder. A noite se aproximou e com pouco brilho resolvi ir em frente. A noite chegou de mansinho e a menina no gramado se deitou. Tateou estrela por estrela, para ver qual mais caberia nos seus sonhos. Olhou para Marte com certo desdenho que me fez, ao fundo da alma, sorrir. Mas eu estava tão escondidinha e tão sozinha, tive medo que a menina me olhasse com seus olhos doces. Ela, a menina, viu o mundo girar e anotou ponto a ponto. E se perdendo em sonhos e temores, encontrou-me. Eu estava lá, no mesmo lugar escuro do céu. Ela me viu e de imediato começou a chorar. Chorar chorar chorar sem nenhuma pausa. Não sei o que se passava em sua cabeça. Ainda era tão noite. Tenho pena da menina.
-Deitei-me mais uma noite para olhar o céu. Noites me fazem pensar que só. Pensar, por vezes, enche-me de desespero e transborda solidão. Incrível. Deve ser o poder encantado das estrelas. Não sei qual seria o meu sonho de hoje, mas procurei sem cessar a estrela que melhor caberia nele. Marte brilhava tanto, e eu sabia que era Marte porque planetas brilham mais que estrelas. Brilho demais, não me cabia tanto. Procurar, procurar. Encontrei uma estrela tão perdida, tão apagada e tão só que senti pena. Não dela, mas minha. Como se me olhasse no espelho e visse tudo aquilo que era difícil de perceber. Eu me encontrei, por isso dei de chorar rios e rios. O choro pode fazer ter um ar triste, mas não. Foi a melhor coisa que me aconteceu. Estrelas pequenas tem um céu imenso só para elas, um infinito. Não se prepararam para agradar os olhos, mas agradam mesmo assim. Assim seja, amém.

domingo

Ainda lembro

Querido,
A segunda carta do dia. Pare de me deixar assim, quase sempre com vontade de chorar. É tudo sincero, mas você é tão... impossível quebrar o muro que você construiu ao seu redor. Desculpa, eu tentei, mas acho que desisto.
Abraços,
Maria.

Atrás da porta

Querido,
Eu planto mais perguntas que respostas

Por que somos peças com tantos defeitos? Por que somos tão incompletos? Por que essa doçura que agora me transborda e quebra e detona e invade e ultrapassa todas as barreiras impostas? Sabe, eu nem achei 2009 tão assim. Gostei, me realizei, mas perdi os jogos. Não, não sei porque quero te escrever hoje, não sei se é para falar dos meus defeitos - que hoje se mostram tantos - da minha doçura - idem - ou do meu ano que acabou de amanhecer. É que sempre que eu me pego assim, desprevenida e com lágrimas nos olhos, sinto vontade de correr para te contar, mesmo que por esse papel, corro para te escrever porque te ver já não é mais possível.
Tudo é tão vulnerável. Uma chuva e tudo vai embora com ela. E o mundo passando por cima de tudo, triturando os sonhos. Não, talvez a culpa não seja do mundo, mas nossa, as velhas peças com defeito.
E como você está? Quase nunca pergunto de você, e parece egoísmo ficar assim, só falando de mim, mas não consigo me poupar.
Quando escrevo para você me vem uma imagem tão forte sua em minha cabeça. Sempre a mesma imagem. Você com aquele sorriso quase saindo, quase ficando, quase pedindo, quase mandando. Será que ainda é assim? Faz tanto tempo que não te vejo. Desde que o ano novo chegou, eu tenho tentado te escrever algo bonito, te desejando todas as maravilhas que a gente sempre deseja, mas a forma não era a de sempre. Algo me impediu. Sempre esse impedimento. O mundo nos impede o tempo todo, querido, mas por quê? Ninguém me diz o motivo de tudo isso. Ninguém me explica por que eu ainda estou sentada escrevendo para você. Ninguém me diz por que eu ainda choro. Ninguém me explica o por que da gente querer parecer forte. Ninguém me diz o por que da força não aparecer quando a gente mais precisa. Eu reconstruo em todos os detalhes todas as cenas de 2009. Todos. Todas. Você aparece e desaparece das cenas. Você apresenta todos os cenários e me diz algo que eu não entendo. Tudo bem, as cenas não são tão ricas de detalhes, mas ao fundo, sempre ao fundo, vejo seu sorriso indo embora com vontade de voltar, segurando as minhas mãos com a incerteza de estar fazendo o certo. Inconstante. Por que você tem tanto medo? Eu queria tanto te proteger, te levar comigo. Por que você não quis vir mesmo? Vir, que não significa 'ver', mas significa 'seguir'. Seguir. Nos impedimos tanto. De novo falo sobre os impedimentos. Ando ficando tão repetitiva que me canso. Peça com defeito. Um dia montei com tanta dificuldade um quebra-cabeça de 200 peças, e sabe, eu contei peça por peça, 199, faltava uma. Sentei e chorei, olhando para todas aquelas peças no chão da sala, naquele tapete cinza. Eu queria te proteger mas quem precisava de proteção era eu, você pode ver? Essa velha falta, essa velha ausência, que me acompanha passo a passo e eu vou levando ela com tanto peso que quase me quebra a coluna. E me finjo de forte, e arrumo a postura. Para, tudo isso é só para que você possa depositar todos os seus traumas em mim, porque você me acha forte, acha que eu supero tudo. Não é isso não, meu bem. Eu estou aqui, veja, jogada no chão dessa sala chorando a peça que falta. Não sou forte não, é só mentira, eu brinquei com você o tempo todo. Eu acabei de ler a palavra "ninguém" e eu já a escrevi tanto aqui hoje. "Ninguém" é uma palavra que me assusta, me arrepia, dá solidão. Quem é ninguém e qual o poder que exerce sobre a vida das pessoas? Hoje eu estou cheia de perguntas, você pode ver, não é? Um dia eu escrevi grande e com caneta rosa: O que move o mundo é o poder das perguntas. Eu queria poder te mostrado isso, mas você, novamente, não me deu tempo. Eu sempre louca, falando de tempos, relógios, minutos, segundos, e fico cansada porque você sabe o quanto falar de tempo me cansa. E esse cansaço, de todos os outros textos. E todas as vezes que eu dizia entregar os pontos. E o sofrimento contínuo. E a Marisa Monte cantando lento você-me-tem-fácil-demais-mas-não-parece-capaz-de-cuidar-do-que-possui. Para de me mandar ir. Eu não vou. Não vá pensando que eu sou sua,
Maria.

sábado

Por você, tango no teto.


"Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não"
Dezessete já? O tempo passou, correu, voou, não é? As coisas que a gente é deve-se, em partes, à convivência com pessoas. Parte do que eu sou hoje, sem dúvida nenhuma, é muito você. E nada que eu te disser hoje vai ser único, eu mesma já devo ter te dito isso tudo várias vezes, mas talvez de formas diferentes, peço perdão por ser tão precária com as palavras...
Aprendi tanto, cresci tanto, mas agora eu tenho que ir. Eu tentei, ao máximo, cuidar de você, te proteger, mesmo que você não precisasse disso tudo. Você é tão auto-suficiente, e do lado de cá tem tanta admiração por você, mas tanta, tanta...
Parabéns Caio, não apenas por fazer aniversário hoje, mas por ser tão você, sempre você. Na medida exata, sem transbordar ou faltar. Obrigada por me ensinar tantas coisas, por me ensinar a ser menos pessimista e perceber que um copo pela metade não é um copo meio vazio, mas um copo meio cheio.
Um dia, se tudo der certo, eu serei ao menos um quarto do que você é, irmão. Seu sorriso "derrete satélites e corações gelados". E te amo, ainda e sempre mais.

PS: E, é claro, feliz aniversário!

sexta-feira

sete seis cinco quatro três dois um.

E que eu me recriminava por estar sempre esperando que nada fosse como eu esperava, ainda que soubesse. Disseste de repente que precisavas ter os pés na terra, porque se começasses a voar como eu todas as coisas estariam perdidas.(...) Mas eu te ouvia dizer que sabias ser necessário optar entre mim e ela, e que optarias por ela, por comodidade, para não te mexeres daquele canto um pouco escuro e um pouco estreito, mas teu - e que optarias por ficar comigo porque a minha loucura te encantaria e te distrairia, embora precisasses te agitar e negar e ouvir e sobretudo compreender novamente tudo todos os dias. E disseste que optavas por mim. Eu já sabia. Por isso não te disse que comigo seria mais difícil do que com ela. Porque sabias também que em todos os de repentes eu estaria abrindo as asas sobre um desconhecido talvez intangível para ti. (...) ainda que nos salvássemos ou nos perdêssemos por qualquer coisa que certamente não valeria a pena. Nem era preciso dizer que não era preciso dizer: eu era o teu lado esquerdo e tu eras o meu lado direito(...) nos encontramos no espaço cósmicos entre nossos dois planetas, e de repente disseste que precisavas sair para tomar um pico e eu disse que precisava sair contigo e comecei a pular em cima da cama e achei bom que fôssemos passear com chuva e eu não ficasse esperando o telefonema que não viria e a campanhia que não tocaria e os astronautas que não voltariam a seu módulo sem nos esgotar inteiramente e a batalha que nos recusávamos a travar com eles e unimos nossas duas órbitas e deixamos os outros habitantes e visitantes espantados com a nossa retirada e nossa decisão e nossa contagem sete seis cinco quatro três dois um.
O dia de ontem - Caio Fernando Abreu.

Tolices

Querido,
I used to care but - things have changed.
No vai e vem das horas, eu me encontro de novo sentada aqui, frente a esta máquina de escrever, falando bobagens para encontrar você. Mas por hoje, só por hoje, eu gostaria de falar de mim, será que ainda posso?
Mexo e remexo nos meus cabelos, penso e repenso nas decisões, mas quais decisões? O ano começa hoje, não há decisões a serem pensadas. Para que se preocupar? Você me diria hoje, com uma voz quase calma, quase nervosa, quase. Sempre quase. E eu aqui, ainda parada. Não sei por onde começar. Quase dormindo. E você neste ano ainda finge que me escuta, eu não finjo mais. Acho que conforme o tempo passa - e nos engole, eu diria - a gente muda, a gente para tanto de se importar, ou de fingir que se importa. Eu não me importo com mais nada, nem com você, nem comigo, nem com a árvore que, na praça logo em frente, suspeita cair. Que caia, não é? Que esmague todos, que comecem tudo de novo.
Começar de novo me assusta tanto, por Deus, como me assusta. Eu estou tão confusa hoje. Quero e não quero falar de você, quero e não quero te manter a par da situação, quero e não quero que o dia de hoje acabe e que amanhã chegue. Amanhã, amanhã meu irmão faz aniversário, se lembra? Eu sempre te perguntando sobre essas suas lembranças, mas é que lembrança é uma coisa que me importa tanto... o que te importa?
Esse gosto de nada, esse amargo de nada. Amargo, salgado, doce, já não sei. Tudo confuso, tudo roda. Ontem os fogos de artifício foram lindos, dizem, mas eu mesma não os vi. Tentei, em vão, fotografá-los, mas era como se fugissem de mim. Mais um ano se acabou e eu nem ao menos sei o que aprendi. Quero aprender. Como naquela música que diz lentamente quero viver quero ouvir quero ver. E vou navegar, mais uma vez, por esse mar remoto, e você, mais uma vez, não vai me acompanhar, mas quem não quer, desta vez, sou eu!
Um grande abraço, daquela que não é mais sua.
Da minha,
Maria.