quarta-feira

contato (i)mediato

Caro senhor,
Peço, desde o início, que compreendas o quão inábil sou com as palavras. Não as tenho em meu domínio, na verdade, creio até ser o contrário.
Peço, também, que perdoe minha intromissão, pois sei que não querias se revelar. Mas é preciso dizer, sim, é preciso dizer.
Há anos acumulo uma bagagem emocional pra lá de bagunçada. Choros pra cá, sorrisos pra lá, amores retribuídos ou platonites agudas. Dito assim parece até haver equilíbrio, mas não há, nem houve. Essa bagagem é inflada de cartas, e eu sou demasiadamente apaixonada por elas, cartas são meus objetos de lembrança, parecem ter cheiro - cor - vida própria. As tuas, por sinal, guardo dentro duma caneca branca, caneca nunca usada para um café no meio da tarde. Caneca: só caneca. Entretanto, mais que um café e gotas de adoçante, esta vem sendo capaz de comportar cada pedaço bem cuidado de entrelinhas. Noto a caneca agora: parece ter cheiro - cor - vida própria também.
O objetivo maior deste bilhetinho, caríssimo, é saber por onde andam ou andaram teus pés descalços e porque decidiram colidir com os meus sem que sentíssemos. Sem que pudéssemos nos ver, sem que pudéssemos saber quem somos. Você gosta das minhas palavras, porque, mesmo sem freios, parecem ser o que há de melhor em mim.

Mas são?

Não aguardo respostas.
Não espero notícias.

Com carinho,
Ana.

terça-feira

Qualquer coisa

Qualquer
Traço, linha, ponto de fuga
Um buraco de agulha ou de telha
Onde chova.

Qualquer pedra, passo, perna, braço
Parte de um pedaço que se mova.

Qualquer

Qualquer
Fresta, furo, vão de muro
Fenda, boca onde não se caiba.
Qualquer vento, nuvem, flor que se imagine além de onde o céu acaba
Qualquer carne, alcatre, quilo, aquilo sim e por que não?
Qualquer migalha, lasca, naco, grão molécula de pão

Qualquer
Qualquer dobra, nesga, rasgo, risco
Onde a prega, a ruga, o vinco da pele
Apareça

Qualquer
Lapso, abalo, curto-circuito
Qualquer susto que não se mereça
Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza

Qualquer coisa
Qualquer coisa que não fique ilesa
Qualquer coisa
Qualquer coisa que não fixe.

Arnaldo Antunes.

Outros quinhentos

Pequena reflexão dos fatos igualmente pequenos. Eu diria, também, que não tem lá grande importância... o problema é que elas têm.
Querido,
Eu bem sei que não sei manter uma conversa séria, sem me desesperar e chorar alguns desperdícios, eu sei que os cacos estão bem espalhados e que os caminhos estão livres, e sei também o quanto insisto em pisar nos cacos. E quem leva a culpa, coitada, é a minha visão, que não trabalha muito bem e eu ainda forço para que ela trabalhe mais do que deveria, enquanto gasto horas escrevendo cartas tão bobas feito essa ao invés de me dedicar arduamente aos deveres de biologia. O problema é que eu não gosto de biologia. E, segundo minha teoria, minha visão se tornaria um problema ainda maior se eu lesse, de fio a pavio, o livro de 500 páginas de biologia. Infelizmente não se faz só o que se quer, portanto, logo após me cansar de te dizer essas bobagens e jantar, vou concentrar meus esforços da visão nas letras negras e desenhos coloridos do livro de biologia. Estou me dedicando tanto a uma causa que não amo por uma questão de honra. Não que isso valha a pena em todos os casos, mas neste vale. Biologia nunca foi minha matéria favorita, e talvez nunca será, mas eu copio cada sílaba que a professora fala para não me perder. Quem dera eu pudesse viver só de cartas assim, não é?! Dispensando a biologia, os cálculos. Viver das palavras, mas palavras não são coisas para se viver. São coisas para se amar. E dedico algum tempo para viver de amor. Amor às palavras. É uma pena que você pense que vivo para te escrever, para te endereçar correspondências. Voltando ao assunto principal que eu nem me lembro qual era.

Esta carta está ficando longa e chata? Tudo bem. Pode parar por aqui, se quiser. Não contei da missa um terço e estou me livrando de uma triste (miúda) que acabava de tentar se instalar na minha bela quase noite de terça-feira.

Amanhã é quarta - feira. Se bem que eu acho todos os dias bem parecidos. Se bem que amanhã não tem aula de inglês como nos outros dias. E eu poderia achar mais um milhão e meio de diferenças nos dias, o rosto de alguém, uma espinha nova no meu rosto, mais uma blusa de uniforme sobre a cadeira, ciclos de humor, aulas... mas não cabe agora dizer cada uma delas. Esse nem é o assunto principal. Mas, me diga, qual é mesmo o assunto principal?
Eu acho que te escrevo agora para me animar. Sem palavras ricas, sem grandes reverências, sem nada de muito criativo. Só o meu amor pelas palavras. E meu sutil grito de, talvez, socorro. Eu estou um pouco cansada e, às vezes, sinto o peso do mundo nas minhas costas. Sabe, eu sinto saudades de quando as horas eram longas porque as preocupações eram, de fato, pequenas: "ai, qual roupa colocarei nas minhas bonecas hoje?" ou, mais tarde "amiga, não sei que roupa vou àquela festa". Não tenho 30 anos, e sei que, quando lá chegar, acharei tudo isso muito babaca, porque terei filhos, trabalho, marido, cachorros, e um mundo inteiro se abrindo para mim. Oportunidades de trabalho, colégio para os filhos, arrumar a gravata do marido, dar ração aos cachorros e, o pior, encontrar tempo pra tudo isso. Soaria babaca mesmo dizer, depois de tudo, que aos dezesseis anos eu estudei num colégio interno, longe de casa, dos meus pais e da vida que eu tinha. Soaria ainda mais babaca se eu dissesse: "ai, não sei o que fazer. Sinto uma dor estúpida no coração porque não sei decidir". Seja como for, quero estar ainda um pouco distante dos trinta, porque esses problemas já me são grandes o suficiente, obrigada.

O dia estava lindo hoje. A noite parece ainda mais linda.

Não quero privar minha visão de nada. Quero viver quantos anos puder - tantos quanto a minha bisavó, que se aproxima dos 100 em grande estilo - para ver todos os sóis, as fases da lua, o homem ir e voltar do espaço. Mas de que isso te importa, não é? Nada disso deve te importar. Tudo bem. Esses dias lindos me fazem bem, sim. Mas não posso negar que fico um pouco triste. Não sei por que. É essa carência afetiva, esse copo cheio até o meio. Meio cheio-meio vazio-meio-cheio-de-vazio. E me dói, no fundo da carne. O amor precisa sempre, em mim, ser o centro das atenções. Acho que, exatamente por isso, muitas coisas me despertam o amor: seja uma flor, uma fotografia, umas cartas, umas pessoas e um rapaz que se parecia com o Bob Dylan antes de cortar o cabelo. Umas pessoas que foram, umas saudades de ontem. Ontens. Ontem que não o dia que antecedeu hoje, mas todos os milhares de dias que antecederam o hoje. A saudade, como o amor, parece nunca se calar. E peço para que ambos não se calem, e nem durmam: mas que gritem muito, que façam a farra em mim. Afinal, procurei por dias a minha composição, e na essência, sou feita disso. Se eles adormecerem, talvez eu adormeça também. Mas no meu coração jovem, na minha alma jovem (ou nem tanto), eles ardem como deveriam. Pois, é como eu disse, desejo viver 100 anos. Ou mais. Nunca menos. 100 anos é a minha meta: e de cabelos grisalhos, com sapatinhos vermelhos e uma casa toda bonitinha. E, se possível, um bocado de crianças me chamando de 'vó, até os que não forem meus netos.

A que se destina essa carta? Não sei. Talvez a deixar o dia ainda melhor. Esvaziar a alma de coisas que pesaram.
Ou talvez nem se destine a nada.

Não tem estrelas no céu. Pode ser que chova.

domingo

Tá fazendo frio nesse lugar.

Talvez até eu já vivesse
em algum corpo emprestado
Esperando só por você
pra reunir meus pedaços

Foi tanta força que eu fiz por nada,
(...)
Só pra você eu me poupei

Será que o tempo sempre disfarça,
Tomara um dia isso tudo passa
Desculpa as mágoas que eu deixei

(...)

enquanto eu me retiro
Só você sentiu por mim
o que nem eu sentiria
Você foi o meu escudo
e eu a própria covardia

Se você ainda acreditar,
eu prometo (...)
Te proteger,
te poupar das dores,
Te devolver o amor em dobro
Não se ama, amor, em vão

(Doublé de Corpo - Leoni)