quinta-feira

Avidez

Olá,
Sabe, eu não ligo. Não ligo de bater nessa porta que não abre nunca, não ligo de correr e bater com a cabeça na parede, de dar murro em ponta de faca, de bater tanto nessa tecla que não funciona. Eu não ligo para mais nada. E não me entristeço mais, eu não te julgo mais. Acho que é porque eu me adaptei a esses nossos encontros casuais, onde ninguém se lembra de nada do dia seguinte. Eu me lembro. E olha que se tem uma coisa com a qual eu me importo são as minhas lembranças. Talvez porque sejam as únicas coisas que, de fato, me pertencem. Você vai continuar longe assim, ainda que perto? Pois é, daqui alguns dias serei eu, longe. Um dia li algo assim: Longe dos olhos, longe do coração. É isso mesmo?
Acontece que, como nas outras cartas, eu reafirmo que a culpa de toda essa bagunça em mim não é tua. É minha, só minha. Ou do destino... mas eu lá acredito em destino? Não. Eu não acredito em destino, nem em força do acaso, nem em você e muito menos em nós. Nós atados.
Não sei por que disse "como nas outras cartas" se você ao menos sabe da existência delas. Eu não tive coragem o suficiente para te entregar, e são tão lindas, tão puras. Mas são minhas lembranças e, como já disse, exijo cuidado com elas.
Bastava que tivesse cuidado comigo. Sabe aquela noite em que o céu parecia com mais estrelas do que o costume e eu parecia menos lúcida que o normal? Eu estava mais lúcida do que você pensa, me lembro de tudo, de cada frase que disse, e como falei naquele dia, não é? Eu queria sortear uma estrela no céu e te trazer de presente, naquele dia você merecia. E tudo o que eu te disse, ainda que tão apressada, era real, ainda é, mas com o tempo, muita verdade se torna mentira. Eu te gostei tanto, e de uma forma tão pura. Eu simplesmente não queria nada em troca, eu não queria que você gostasse também de mim. Amor não se retribui por gentileza e eu aguardava que, um dia, as coisas mudassem, para mim ou para você. Mas nada se alterou. E você me abraça e de novo é como se me pedisse para esperar só um pouco, que o seu tempo estava aí e você iria se cansar de toda essa vida sem rotinas, que você ia mudar. Eu não queria mudar você, eu não quero.
Eu não sei qual a força que ainda nos une e o que me mantém tão, tão ligada em você. Sempre que eu pareço ir em frente, te olho e insisto em dar dois passos para trás. Eu devo gostar disso. Devo gostar de chegar em casa sabendo que não vou te ver amanhã, e que não vou te ver por tantos outros dias, e que seu lugar ainda está guardado e você simplesmente se esqueceu dos convites do teatro. Que peça era mesmo? Você disse que estava com fome e iria embora, mas antes me levaria. Você me levou embora, me deixou em casa, me deixou para sempre a tua espera, a espera de uma ligação qualquer, um lamento qualquer, uma notícia qualquer. Ainda somos estranhos. Eu ainda me sento no teatro e você ainda não chegou, você não vem. Olho no relógio, mais de oito, meia hora de atraso, me levanto. Não, não me levanto, pois ainda me vejo muito nítida te esperando. Eu continuo a te esperar, a tentar abrir essa porta sem trinco, esse coração sem porta. Mas é por pouco tempo, anota para não dizer depois que não te avisei.
Da quase liberta,
Maria.

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